terça-feira, 27 de abril de 2010

Desfavores do sr. Hemingway


Futura jornalista busca orientação. A torre Eiffel não aponta para porra nenhuma.

Suponho que nos tempos que Hemingway vagava por Paris, vida de correspondente era algo bastante mais difícil e, talvez por muitos aspectos, mais divertido. Seguramente mais divertido para quem ouve e mais novidadesco para quem lia.

Ando meio obcecada pelo homem e fui seguir o roteirinho preparado pelo Michael Palin _do igualmente venerável Monty Phyton_ para a 'Time Out' e ver se via algo diferente. Mas até a placa na porta do prédio onde ele viveu contando trocados e desenvolvendo seu estilo absurdamente direto que eu tanto amo é discreta. Passa batido no turbilhão da rua apinhada de gente, bares e loja de tranqueiras.

A rua é um pequeno caos. Acho engraçado quando as pessoas pensam que ser correspondente tem qualquer glamour. Penso no Hemingway contando os tais trocados. Ou tendo trabalhos rejeitados. A vida do homem não era fácil, ainda que metido em um círculo fabuloso. Quando a sua vida e o seu trabalho são tão ligados que você acha que não seria você de outra forma, tanto pior. E quando você é medíocre, não um gênio... Malditos gênios que alimentaram esse mito do glamour, com o qual agora nós, os medíocres, temos de lidar.

Arrisco também achar que havia algo ligeiramente mais fácil: ser, ou parecer, original. Da mesma coisa que trouxe essa dificuldade nova _e tantas outras facilidades, sobretudo para localizar gente e informação_ veio também o que para mim é um grande paradoxo e que marca bem forte essa temporada aqui. Estar tão perto/tão longe.

Tenho amigos correspondentes muito bem enraizados onde vivem, com família e um círculo sólido. Não é o meu caso. Uma amiga-irmã está aqui, e sou diariamente grata a este pequeno luxo. Conheci algumas pessoas que definitivamente eu levo para a vida toda, e muitas que deixarão uma saudade enorme. Recebi visitas queridas. Receberei outras mais. Eu sou, de fato, abençoada com as pessoas que conheço - e esta nem é uma constatação nova.

Mas eu levo também uma vida completamente alheia de todos. Os que ficaram e os que aqui estão. Vivo em um fuso híbrido que me inviabiliza o contato frequente aqui. E com os que ficaram, bem, hoje não é muita gente que tem o tempo ou a vontade para telefonemas. Com a hiperconectividade, você online o tempo todo, para que ligar, para que ouvir, quando você pode postar como em uma conversa de surdos?

Este é um paradoxo da vida de correspondente, pelo menos quando se é intinerante. Você está tão presente e tão distante. E porque está tão presente, tanta gente acha que realmente sabe o que está acontecendo, ou que é possível julgar o que esteja passando.

Claro que não cabe a ninguém minhas escolhas, e eu sou realizada com elas. Todas elas. Mas o imenso prazer que elas me dão não apaga as horas sozinha, as noites em claro, a impotência de estar longe e a negligência de estar perto sem realmente participar. Eu sou grata ao que me foi permitido e eu multiplico da melhor forma. E isso não compensa os beijos perdidos, abraços interrompidos, copos entornados durante uma boa conversa, a possibilidade de espairecer após um dia ruim. Porque a minha vida não é matemática, eu não somo conquistas e subtraio percalços. Está tudo lá, correndo lado a lado, tão capaz de ser feliz quanto de se sentir melancólico ou triste. Quem gosta de coisas demais e pessoas tantas dificilmente seria de outro jeito.

Culpemos também Mr. Hemingway e os outros mais por fazerem o desfavor de dar esse falso lustro à profissão. Porque houve ele e porque há tantas coisas boas você não pode nunca ousar ter um problema ou achar algo minimamente negativo, afinal, que diabos, você é um abençoado. Fazer uma coisa que todo mundo sabe o que é e tem alguma ideia a respeito, e estar hiperconectado, te deixa exposto e vulnerável a qualquer julgamento. Regra comum, mas que a distância, os desencontros e os desinteresses amplificam. Desconectar não é uma opção, não há silêncio onde se resguardar.

Confortante é minha memória plena, esse saco de coisas boas e ruins misturadas, sem as quais não se avança. Não vim atrás de glamour, ideia idiota. Se a minha vida fosse sempre boa, ou lustrosa ou perfeita ou irreparável, ela seria profundamente aborrecida. Eu sou satisfeita assim. Conformada, jamais.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Praga


Não sei se minha conta de saguão de aeroportos já bateu nos 50 (até o das Ilhas Jersey eu conheço, mesmo sem conhecer as ditas), mas calculo que algo entre uma semana e um mês da minha vida tenha sido perdido entre chegadas e partidas. Hoje mais uma, e as despedidas são cada vez mais doídas. E cada vez mais constantes, com você espalhando pedaços em diferentes cantos.
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Não sei se minha conta de cidades visitadas já passou das cem, mas a de revisitadas é bem curta. E a páscoa foi para rever aquela que eu acho a mais bonita no mundo, embora haja gente que insista em dizer que é o Rio de Janeiro. Não é, é Praga com suas ruelas estreitas, suas pontes com estátuas debruçando-se muito ousadas sobre o rio Vltva e as igrejas de torres góticas e pedra encardida se amontando em praças e qualquer outro lugar onde houver uma brecha no meio dos telhadinhos vermelhos, com o espírito do Kafka bem provavelmente vagando aqui e ali.

O céu não arroseou como da outra vez, atendo-se a um vermelho esmaecido e depois já um roxo de chegada de primavera. Mas as luzes encheram as marugadas todas, fazendo a cidade transbordar do real ao sonhado, entre sombras e brumas e névoas e brilhos, as tantas estátuas ganhando projeção sem os turistas para se amontoar sobre elas, a torre falsamente prateada cismando em sair por entre os andaimes que já recobrem boa parte da Karlov Most, os restaurantes abertos com o cheiro de comida quente, gulash, sopa de abóbora, pato, e a cerveja enchendo todos os copos, dourada, amarga, encorpada, generosa.

Mas as hordas em rondas eram novas, novas e muito incovenientes, recobrindo todo o espaço nas calçadas e ruas, nos paralelepípidos, nos bondes, nos táxis, nos prédios, nas naves e nas torres, a andar em bandos, em blocos, em arrastão para enloquecer qualquer acrofóbico. Uma progressão geométrica para 1999, quando eles já não eram poucos, mas quando a cidade ainda recebia eslovacos e romenos e tinha mendigos nas praças, o inglês era raro, as lojas de suvenir contáveis e os preços risíveis.

Agora não, agora Praga ainda é a cidade mais bonita do mundo, o castelo no alto vigiando tudo, os telhadinhos lá embaixo, o rio, e mesmo os bairros afastados com seus incontáveis prédios produzidos em linha de montagem pelos programas habitacionais comunistas em uma simpática harmonia que os torna muito mais afáveis que os de Moscou. Mas aí tem o barco oferencendo o 'cruzeiro com jantar e jazz', as excursõs em segways, os bares com música pasteurizada, e toda a sorte de cafonaria, badulaques, menus turísticos e o que o seu bolso cobiçar. Alguma coisa da Praga que eu vi em 1999 não tem lugar em 2010, não existe mais, a cidade borbulhou para perder um pouco da sua essência. De tudo que um dia foi chamado de Leste Europeu talvez nada seja tão ocidental quanto ela, tão pronta agora ao gosto do freguês.

Amanhã Barack Obama e Dmitri Medvedev fazem de Praga o palco de seu novo tratado desarmamentista, e os praguenses contavam orgulhosos aos poucos americanos, 'você sabia que seu presidente estará aqui amanhã?' Não, eles não sabiam.
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Me pediram para gravar um vídeo-conselho para quem está na faculdade de jornalismo. Eu não consegui e nem ninguém que está aqui está na faculdade de jornalismo, mas eu quero registrar mesmo assim: gaste todo o dinheiro que você puder viajando.