quarta-feira, 23 de setembro de 2009

regina

Regina faz a unha com um olho na vizinha e outro na mão da cliente. Se tivesse o tal do terceiro olho, ele estaria vigiando José instalar o fogão novo, seu orgulho mais recente.

O português punha a cozinha do pequeno apartamento abaixo com a ajuda de um colega mais atrapalhado. "Aqui na Suíça eles já fodem tudo para a instalação, que assim você chama o técnico deles e paga uma nota por um serviço de cinco minutos", diz ela, deixando a amiga emendar uma história sobre dobradiças ao contrário.

Estica o pescoço e confere o que a senhora no andar de baixo, a quem sutilmente chama de "a louca", faz. A rotina aparentemente é repetida várias vezes ao dia, para prejuízo da orelha alheia. "Ninguém aguenta essa mulher não, nem o ex-marido", espeta a amiga. As duas listam o que as leva pensar que "a louca" seja de fato louca por opção. Condescendência nenhuma.

Regina conta que já comprou dois terrenos na sua terra natal, Goiás como a de tantos, e que quer viver de aluguel quando voltar. Estava em Portugal, mas lá o dinheiro não rendia, "trabalhava como louca num asilo como trabalhei em um hospital no Brasil, e não soabrava nada". Fazendo unha da clientela de suíças e expatriadas há quatro anos, diz, a vida ficou bem melhor.

Melhor mesmo só com a chegada de José, que ela conheceu num bar quando trabalhava no balcão. O português de cara fechada não a atraiu de pronto, mas no dia em que ela concluiu que não tinha nada a perder e foi, o clique bateu. Agora Regina quer casar, e está amolecendo o noivo com a promessa de envelhecer em um dos países natais.

De preferência, o dela _mas só depois de uma demonstração empírica ao futuro marido de que o dele não oferece lá muitos atrativos ao casal, conclui. Para viver aposentado bom é o Brasil. Ela franze a testa e divaga. "Até ele se aposentar acho que eu já consegui convencê-lo", se anima. E quanto tempo falta? "Quinze anos." É muito. Muita água para correr.

Balela. A moça pensa a longo prazo, faz conta e tem paciência. "Se ele não quiser, eu caso com outro. Simples assim."

Simples assim.

sábado, 12 de setembro de 2009

pasquale, stefânia e a sogra


Mamma Stefânia mora aqui. Mas meu empenho era num lugar bem mais feio.

Pasquale, Stefânia e a sogra _não sei de qual dos dois, mas a cara diz "sogra" antes de "mãe"_ administram o pequeno hotel em uma cidadezinha italiana. Pasquale se comunica com pessoas que não falam italiano, mesmo que ele não fale outra língua; a sogra cria problemas e Stefânia salva jornalistas atrasados.

Stefânia bateu na porta nesta manhã. Olhei o relógio do celular, e catzo, dizia 8h. Por que a mulher me chamava àquela hora? Eu tinha acordado sozinha três horas antes e estranhado, meu relógio biológico nunca diz "5h, acorda". E agora ela não me deixava dormir direito.

"Suo impegno, signorina, suo impegno a 10!" (escrevo como ouvi, minha tecla SAP está em pane)

"Mas mulher", abro a porta irritada, a faxineira estava atrás dela já tentando entrar no quarto com um esfregão. "OTTO ORA."

"Não. 15 para as 11. Seu compromisso não era às 10?"

Aimeudeus. Olhei apalermada. O celular dizia 8 e pouco. Peguei o relógio, que concordou com Stefânia. Meu "empenho" _aquele que tinha me feito passar a quarta-feira entre aeroportos e aviões e avionetas distintas e antes precisado de horas de telefone em busca de autorizações_ era às 10. Meio-dia acabava, ou até meio-dia poderia entrar por duas horas, até agora não entendi bem a licença. Stefânia me tira do transe. "Mete a ropa, alora!"

Obedeci. Não tomei café-da-manhã. Não tomei banho. Stefânia ainda me chama um "táxi" (não tem aqui, mas eles dão um jeito). Pasquale faz um espresso. A sogra, a que olha para mim e pergunta "mas você vai pagar, né?" toda vez que faço qualquer pergunta, observa. Stefânia me acalma enquanto o tal do táxi não chega, eu já me sentindo uma anta. O táxi vem.

No meio da tarde volto, antes do próximo compromisso, e ela está na portaria sorridente. A sogra pergunta se foi tudo bem. Digo que sim, santa Stefânia. A sogra, que sempre fala com um sotaque impossível, pergunta num italiano claro, "É como tua própria mamma, não é? Te acordando desse jeito."

Não tenho como dizer que não. Quase dou um abraço na Stefania pela boa lembrança. Ser acordada pela mãe sempre foi a terceira melhor maneira de ser acordada. As duas primeiras, afinal, cabem ao Respectivo.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

basiléia


vista do rio Reno.

Drenada pelo sistema bancário internacional

sábado, 5 de setembro de 2009

corrida maluca


Mlle. Lapin, sentindo-se ótima após as intempéries diárias e um pouco de competição

Abro o jornal da concorrência para ver, desgosto meu, que o vice-presidente da Colômbia havia passado por Genebra e o colega o havia pego em algum corredor. Nenhuma grande declaração para mudar o mundo, mas, enfim, é o vice da Colômbia, podemos falar de base para os EUA, Unasul, re-reeleição uribenta, há notícia. E eu, aqui, nem vi, a ONU não sabia, e eu tinha licença das bases (as minhas) para ficar mergulhada em três outras apurações complicadas.

O texto não dizia se era Genebra, e pode parecer óbvio que fosse, mas no caso não era. Eu precisava, ademais, saber se o sujeito ainda estava aqui.

Milhões de telefonemas para a missão da Colômbia, ninguém atende, tentativas randômicas de ramais, nada. Ligações para a ONU, busca na internet, site de tudo quanto é organismo_tudo isso, veja, de umas 10h30 da manhã até umas 14h45 de sexta-feira, no meio de outras coisas, com a amiga/pauteira perguntando se ele ainda estava aqui. Até que, ok, uma das assessoras da ONU diz que o dito cujo tinha um debate que terminava as 15h no Palais des Nations.

Voei até o ponto de ônibus, não tinha troco _os bilhetes aqui só são vendidos em máquinas, com moeda ou cartão específico. Tentei um táxi, ninguém parava. Comprei cartão do ônibus, mas aí não sabia que hora voltaria, só tinha 10 francos no bolso e o crédito do celular no fim. Perdi o ônibus. 14h55.

Em frente, o Correio, com caixa e recarga de celular. O caixa cospe meu cartão. Duas vezes. Entro para recarregar o celular, depois fecha tudo no fim de semana, eu tenho de viajar e danço. Espera, senha, hora de pagar, só aceitamos dinheiro, madame. O caixa está lá fora. Volto, xingo, o caixa, esfrego o cartão. Liga uma conhecida a quem eu havia pedido ajuda para achar um personagem, quase desconto na moça. 15h05.

O dinheiro sai, volto, mais fila, perco outro ônibus, ligo para a missão colombiana e nada, nada. Resolvo esperar e resolver o celular. 15h25.

Espero um táxi dez minutos. Na espera, percebo que perdi meu lencinho amarelo que comprei na Rússia, fico chateada bem menina mesmo. Desisto de ir à ONU, não dá mais para pegar ninguém a essa altura. Balanço a cabeça e começo a me conformar, mas continuo tentando ligar para a missão, lamentando que a essa altura não haveria ninguém. A frustração me faz entrar na loja de tecido em frente para comprar um retalho para um vestido que perdeu a faixa na cintura, "jaune" e "robe" era tudo que eu sabia explicar em francês. Espero a moça cortar, mais uma ligação, a missão atende. 15h35.

"O vice vai estar na sede do Comissariado de Direitos Humanos da ONU às 16h". Toca achar um táxi. Computador, bolsa, sacola, tudo não mão, sem táxi. Pego o endereço, desespero, ligo para o colega-amigo para saber como chegar. Ônibus 1. 15h45. Embarco no 6, ali perto, a motorista me orienta onde pegar o 1. 15h50. Acho o ponto na mão errada. Desisto de procurar, corro para a estação, lá tem táxi. Palais Wilson, por favor. 15h55. Trânsito.

Os guardas são atenciosos, mas me barram. Já liguei, nesse interim, umas quatro vezes para a missão. A reunião começou, não dá para falar com ninguém. Por favor, madame, espere.

Desiludida, desanimada, cansada e me achando uma idiota por passar a chance, decido que não tenho mais a perder se esperar. Umas 7 ligações randômicas depois, uma promessa de que o vice fale na saída. A reunião termina 16h30, passa 10, 15 minutos, nada. 17h, telefone na recepção. Pode vir la peridista brasileña. Pero vienes con nosotros a la mission. Tá bom, vão me dar um balão, cadê o táxi?

Muito fofos, Alma e Álvaro, os diplomatas, me dão carona. Ao chegar _e a constatação de que existe trânsito genebrino_ já são quase 18h. Levam-me até uma salinha. Espio e não tem ninguém. Entro e assusto, o sujeito está meio descansando no sofá. Descalso. Fazendo piadas. É o vice. Preguntame lo que quiera.

19h, ainda ganho carona. Adoro quando parece que tudo vai dar errado, mas dá certo.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

tia magnólia

Tia Magnólia passou o dia na frente do fogão, fazendo feijoada para um bando de brasileiros carentes de casa perdidos por Genebra. Eu não, eu estou aqui há pouco tempo e não fico tanto. Mas claro que isso não é motivo para desprezar um convite para feijoada, ainda mais quando o feijão é raro. Corta. Volta para tia Magnólia.

Tia Magnólia cozinhou para o pequeno batalhão e passou a tarde elencando suas prendas culinárias, vatapá, caruru, tapioca, essas coisas de baiano que fazem salivar. Bob na cabeça, dava ordens, bebia caipirinha, se autoelogiava e mantinha o humor da turma pouco homgênea no alto. Os autoelogios, descobri, eram justos. "Prova meu molho lambão", ela começa dengosa. E acerta na pimenta. "Agora a farofa. Tá de chorar."

Morena de cabelo pintado acajú, está na casa dos 50 e algo, creio, mas ela não diz quanto tem. Usa umas roupas coloridas e está um tantinho acima do peso _e daí, quem se importa, cozinhando tão bem tem mais é que provar mesmo. É daquelas pessoas que ficam íntimas imediatamente, e que todo mundo quer roubar para si. A anfitriã da feijoada é amiga do filho da dona em questão, mas diz que a tia é dela e ninguém tasca. Está ali meio de passagem, meio de vez. Continua morando no Brasil mas vem visitar quando a saudade aperta, fica uns meses, se vira e volta.

Não se queixa da vida. Termina de limpar a cozinha após ter alimentado a tropa, toma um banho rápido e tira os bobs. Vai encontrar o gatinho, tia? "Que gatinho o que, minha filha, olha a minha idade." Ela quer é fazer ciúme para o ex-namorado. Que arrumou outra quando ela voltou para o Brasil e terminou, e agora que ela está aqui de novo, ele ainda não sabe o que fazer com a italiana, "mas ele gosta de mim que eu sei". Pega a bolsa, mas não quer pedir para o pretendente buscá-la, "não tem intimidade para tanto não". Sem se avexar pede para o amigo do filho levá-la para encontrar o paquera lá e o ex também.

E nós ficamos ali, empazinados, 20 anos a menos, preocupações e autocomiseração demais.

Tia Magnólia não. Tia Magnólia sai para dançar.